A guerra é uma manifestação horrível da condição humana. O estupro é seu fiel acompanhante desde sempre.
And they, like straggling slaves for pillage fighting,
Obdurate vassals fell exploits effecting.
In bloody death and ravishment delighting,
Nor children’s tears nor mothers’ groans respecting,
Swell in their pride, the onset still expecting.The Rape of Lucrece (LUC.429) – William Shakespeare
Guerra entre Alemanha e União Soviética (1941-1945): vinte milhões de mortos, um número similar de feridos e pelo menos dois milhões de mulheres estupradas. Invasão e posterior ocupação da China pelo Japão (1937-1945): de 10 a 15 milhões de mortos, um número de feridos na faixa dos vinte e pelo menos 200 000 mulheres violentadas. Conflito separatista no leste do Congo (começou em 2003): mais de 8 milhões de mortos, uma cifra astronômica de mutilados e mais de 400 000 mulheres violadas (e as hostilidades não acabaram ainda). Guerra civil na Colômbia (últimos 50 anos): segundo a ONG britânica Oxfam, houve 4 milhões de refugiados internos, maioria deles mulheres e crianças, sendo que 40% das mulheres que fugiram das suas casas foram expostas a violência sexual. Desintegração da Libéria pelos war lords nos anos 1990: um pais destruído, 70% das mulheres foram violadas. E bem mais perto de nós, insurreição armada do Lampião no Sertão (décadas de 1920 e 1930): dezenas de mulheres abusadas, o clímax do horror foi atingido na violação coletiva da mulher do delegado da cidade de Bonito de Santa Fé (PB) pelos cangaceiros em 1923. O Robin Hood brasileiro achou útil usar (e participar) a violência sexual como tantos senhores da guerra antes e depois dele. Há milhares de exemplos, alguns mais perturbadores do que os outros. Paramos por aqui. Se os balanços das guerras fossem dados desse jeito, a Gloria dos vencedores teria matizes novas. Se os manuais escolares relatassem a violência feita as mulheres pelos “combatentes da liberdade”, a História da Humanidade teria outro sabor. Os monumentos comemorativos seriam menos prepotentes, e os cemitérios militares teriam umas placas a mais testemunhando do horror suportado pelas mulheres, a maioria em silencio e sob o selo da vergonha.
A guerra é uma manifestação horrível da condição humana. O estupro é seu fiel acompanhante desde sempre. Não há uma guerra sem estupro (salvo na dita guerra cibernética ou eletrônica). Não houve embate entre nações, povos, etnias ou tribos sem violência sexual. O estupro é o crime (de guerra) perfeito. Custa barato (não precisa de logistica nem de cobertura aérea), é rápido, é fácil de cometer já que assedia alvos sem defesa ou despreparados, ninguém ou muito poucos denunciam, e a chefia fecha os olhos e não quer saber de nada. Visto de longe, o estupro é ume efeito colateral a mais da guerra. Mas, veremos mais tarde que se trata do filho predileto da violência, na sua vertente total e despiedada. Infraestrutura destruída pode ser reerguida, é questão de dez ou vinte anos (A Alemanha demorou pouco para apagar a destruição total do ano 1945, igual fez o Japão que apesar das duas bombas atômicas conseguiu abrigar as Olimpíadas de 1964). Feridos e mutilados podem receber pensões e reparações pagas pelas nações vencidas. Mas, quem vai ressarcir as vítimas do abuso sexual, mulheres e crianças? Como reparar o dano feito aos corpos, as mentes, as famílias? A onde houve estupros de massa, não tem mais nação, não tem mais vida normal. A Libéria atual é um fantasma, uma terra mais derrelita que o próprio Haiti. A Bósnia Herzegovina hoje em dia é um imenso campo de refugiados e refugiadas que passaram por um imenso pesadelo chamado limpeza étnica (1991-1995). A peça mais horrenda foi o estupro sistemático e organizado em campos de concentração. Dezenas de milhares de muçulmanas eslavas (Bósnias) foram estupradas por cristões ortodoxos eslavos (Sérvios). Sarajevo, capital da Bósnia, outrora uma cidade cosmopolita e festiva, nunca voltará a ser uma cidade alegre.
Estudar o tema do estupro na guerra é muito difícil. Poucos se interessam por ele. Ainda, não entendo todas as razões de esse silêncio acadêmico. Talvez tenha a ver com o fato que os historiadores são homens na maioria, menos sensíveis a questão da violência sexual do que as mulheres. Outro motivo seria a preferência popular por ver na Historia uma sucessão de Batalhas decisivas e Reis ilustres. Parece-me que poucos querem saber do que acontecia nas margens dos grandes exércitos, de Alexandre o Grande até o Marques de Caxias. Com certeza, o caractere íntimo do estupro e sua carga social (a vergonha) não incita os chefes dos estados vencidos a pedirem reparação pelas suas irmãs, filhas e compatriotas violentadas. Por fim, estuprar não é matar com um tiro ou um machete. Não tem nada a ver com lançar um míssil ou um torpedo. O crime acontece numa zona de confluência entre o íntimo (o leito, a casa, o útero) e o público (a rua, a casa invadida, o crime usado com fins de propaganda para desmoralizar e intimidar). Tamanha complexidade tira o interesse por estudar a violência sexual na guerra. Vários tipos de violência sexual não são nem sequer repertoriados pelo Direito local e internacional. Obrigar uma mulher a limpar um quartel, lavar roupa de soldado, escutar xingamentos, obriga-la a se vestir de maneira sexy ou pelo contrário manda-la se cobrir da cabeça aos pés…nenhuma dessas práticas degradantes está enquadrada como abuso de caráter sexual. Mas, todas têm tudo a ver com a agressão do homem a mulher por ela ser mulher.
Uma pergunta para começar: por que os soldados estupram? Foram instruídos a violentar? Se for assim, cadê as transcrições escritas das ordens? Ou será que abusam das mulheres por indisciplina? Ou será que violentar faz parte da guerra? A arte da guerra, a sua essência induziria possuir as mulheres, degrada-las e mutilas física e emocionalmente. Sem sombra de dúvida, estudar esse tema equivale a mergulhar no lado podre da humanidade, é algo como desvelar o retrato real do Dorian Gray sem feitiço nenhum: corrompido e repulsivo.
Quem parece ter entendido perfeitamente a natureza profunda da guerra (se tanto que ela existisse) é a própria instituição militar. No mundo inteiro, e até nas nossas terras ocidentais tocadas pelo feminismo, os exércitos vêm resistindo a participação das mulheres. Foi em 2015 somente que a U.S Army aceitou ter mulheres na força de elite Rangers e nas missões de combate. Desde os anos 1940, a Ground Combat Exclusion Policy as mantinha acantonadas nas funções de suporte. Porque será? Talvez as hierarquias militares sabem intimamente que fazer a guerra é também arrebentar a mulher do outro e violenta-la.
Não cabe duvida do que o estupro em si é um eco remoto do velho conflito entre mulheres e homens. Existe mesmo uma tensão entre os sexos que não precisa de muito para se transformar em violência simbólica e material. Desde sempre, os homens monopolizam os papeis nobres (estudar, produzir artefatos, falar com divindades, etc.), as mulheres as tarefas repetitivas e degradantes (limpar a casa, cozinhar, lavar a roupa, etc.). Da repartição das tarefas domesticas até o feminicidio, há um continuum que me parece obvio. Em Paris, 50% das sorties da polícia, no período noturno, têm a ver com violência de gênero. 50%! Acontece igual no Rio de Janeiro e São Paulo. A guerra entre os sexos é um fenômeno universal. Durante a investigação preparatória a esse artigo, mantive a esperança de achar civilizações “primitivas” onde homens e mulheres vivessem em harmonia. Resultou difícil. Até os índios das Américas parecem se envolver nessa guerra eterna. Na Colômbia, o povo indígena Awá (estado de Nariño) conta com um pouco mais de 2000 membros. Vive isolado em aldeias que aplicam a lei indígena (num regime de exceção cedido pelo governo colombiano). Furtos e até homicídios são julgados conforme o direito consuetudinário. Relatos da Oxfam demostram que até os Awá discriminam as mulheres: em alguns processos, mulheres grávidas foram condenadas a dormirem em lugares frios, outras (sem serem gravidas) foram obrigadas a andar na rua desnudas em sinal de castigo público. Se até os Awá cometem violência sexual, o que esperar em culturas de raiz judeo-catolica ou islâmica?
A violência sexual parece tão natural e tenaz que as próprias mães a perpetuam. Em amplos setores da África (Egito, Sudão, Mali, alguns pedaços do Golfo da Guinea), as meninas são submetidas ao ritual macabro da excisão. É uma questão 100% feminina já que as mães providenciam o “especialista” que cuidará de mutilar a filha. Se isso não é violência sexual, se isso não é guerra entre os sexos, que seria então? Apesar do Islam, a religião dominante em alguns dos países citados acima, proibir expressamente essa pratica, as meninas são violentadas em cerimonias públicas (festas em casa) onde o clitóris está seccionado. Nesses tempos onde o Islam parece todo poderoso e intransigente, vale ressaltar que nem essa crença resiste a raiva eterna dos homens contra as mulheres[dg1] .
OK, o estupro é o filho da guerra, um demônio da comitiva de Marte. OK, ele remete a um antagonismo profundo e cruel entre os dois sexos. Mas, como explicar que alguns exércitos estupram e outros não? A armada nazista ocupou a França de 1940 a 1945, não foram reportados abusos, nem na época nem agora apesar do recuo crítico e do acesso aos arquivos que concedem 60 anos de distância dos fatos. A Werhmacht e a SS não estupraram (ou pelo menos não cometeram nada de sistemático nem significativo ao respeito). Na mesma época, outro exército de uma nação disciplinada e altamente convencida de sua superioridade racial, o Japão, estuprou centenas de milhares de mulheres na China, na Coreia, na Indonésia, no Vietnã, nas Filipinas, etc.
Como explicar tamanha discrepância entre dois exércitos aliados? Ambas tropas de conquista, brutais e disciplinadas? Porque alguns abusaram e outros não, participando afinal da mesma guerra mundial? Efeito da geografia? Diferenças de doutrina militar? Variações no tipo (raça) das populações invadidas? Reflexo remoto do background religioso de cada um? A essa altura, não tenho a resposta definitiva. Mas, há um insight fascinante que anima a abrir uma frente pioneira no pensamento sobre violência sexual e guerra: o estupro seria “útil”. Ele tem uma função claramente identificada e medível pelos mandos militares. Baixo esse conceito de função tática do estupro, poderíamos postular que os nazistas não sentiram necessidade de abusar das francesas. Enquanto isso, os japoneses vieram interesse compulsivo e vital em degradar o inimigo infligindo danos insuperáveis as suas mulheres. Tudo isso merece uma investigação detalhada e seria, eis uma das chaves para entender estupro e guerra.
De momento, podemos delinear algumas funções habituais da violência sexual usada por toda classe de combatentes (exércitos regulares, guerrilhas, milícias):
A mulher faz parte de um botim de guerra. O conquistador tem direito a usufruir dos bens disponíveis no território. Os retardados do E.I seguem essa linha na Síria e no Iraque, abduzindo mulheres de outras crenças e até mulheres sunitas de cidades do infamo “Califato”. Esses bárbaros não inventaram nada no fundo, a mulher do inimigo (até a criança) figura como recompensa explicita ou tácita dos exércitos vencedores.
Estuprar significa estabelecer um domínio sobre um território, até em tempo de paz. Os americanos mantem 50 000 soldados no Japão (dados de 2014). Essa tropa deve defender o Japão contra a hegemonia chinesa no Pacifico e a loucura da Coreia do Norte. Mas, vários soldados americanos entenderam a missão do lado errado: volta e meia abusam de japonesas na ilha do Okinawa. Em 1995, três deles abduziram uma menina de doze anos para abusa-la. Talvez não entenderam que não estamos mais em 1945 e que Japão não é mais um inimigo que merece castigo. Ou talvez eles entendem que estão em terra conquistada, onde vale o direito do mais forte ou seja da força de ocupação.
Infligir uma desgraça ao inimigo para desmoraliza-lo e convence-lo de depositar as armas logo. Pode ser também uma vingança que procura humilhar e estabelecer “no duro” a dominação.
Aniquilar o inimigo numa logica de guerra total, sem quarteis cujo objetivo é destruir o outro, corpo, mente e cultura. O contexto típico dessa modalidade são as guerras étnicas. Na chamada política de limpeza étnica praticada contra os muçulmanos da Bósnia (1991-1995), o estupro foi uma ferramenta de “engenharia” militar. Uma arma não convencional suja e desprezível mas terrivelmente eficiente. Em poucos meses, um povo de mais de 500 anos de História foi destruído ou pelo menos permanentemente desfigurado. Se não fosse pelos Estados Unidos (presidência do B.Clinton), o povo bósnio seria uma horda de mulheres gravidas de bastardos e de homens terroristas (de)formados pela guerra civil. Nessa modalidade peculiar de violência sexual, a publicidade é fundamental. O exército que a pratica não tem nada a esconder. Brotam vídeos, testemunhas e fotografias que vêm confirmar a desgraça dum povo inteiro. Como por magia (a magia da incompetência burocrática?), a ONU e a Comunidade Internacional não conseguem enxergar nada… ou demoram um ou dois anos para abrir os olhos. Enquanto a ONU procurava “provas materiais”, os Sérvios violentaram mais de 200 000 mulheres muçulmanas.
Suspeito de múltiplas outras funções do estupro no ambiente bélico. Sendo assim, não é de estranhar que ele seja tão prevalente nas guerras ou seja na História. Os soldados violentam porque eles como indivíduos e a organização militar tem interesse nisso. Aterrador!
No livro que tenho em preparação, irei expor novas dimensões da “utilidade” do estupro na guerra. Por vários aspetos, esse estudo equivale a um mergulho insano em assuntos perturbadores. Às vezes, me pergunto porque não foi descrever a batalha de Stalingrad ou a história dos helicópteros de combate no Vietnã? Tenho a ilusão que documentar a realidade dos estupros na guerra, colocar nomes e números acima de desgraças esquecidas, seria uma pedra ao edifício da defesa das mulheres, das crianças. No fundo, defende-las é proteger nos todos em suma. Por outro lado, se entendermos os mecanismos psicológicos, culturais, burocráticos, entre outros, que levam soldados a violentar, teremos uma chance mínima de armar as sociedades contra essa ameaça. Que tal sonhar com uma Convenção de Genebra bis para coibir os estupros? Um tratado com mecanismos de enforcement adequados aos fatores que transforam homens armados em predadores sexuais.
Eis a principal ambição do trabalho que venho conduzindo. O livro em preparação almejará mandar uma mensagem (um grito) a comunidade militar e política e sobre todo sensibilizar a cidadania sobre uma guerra silenciosa que as mulheres vêm sofrendo.
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